FÉ E JUSTIFICAÇÃO
- Igreja Batista Reformada
- 30 de out. de 2022
- 18 min de leitura

Fé e Justificação
Por Teodoro de Beza (1519-1605)
Prefácio dos Editores
O presente artigo foi escrito por Teodoro de Beza e retirado do capítulo quatro, seções de 1-13, do seu livro “A Fé Cristã”, traduzido para o inglês por James Clark (focus christian ministries trust, leste de Essex, Inglaterra, 1992). Este livro foi uma espécie de best seller durante a Reforma Protestante, surgindo em 1558 sob o título original em francês: Confession De Foi Du Chretien (Confissão de Fé Cristã,). A atual edição não contém nenhuma restrição quanto a direito autorais, portanto, assume-se que os artigos contidos nela podem ser distribuídos livremente. A versão digital deste livro foi digitalizada e editada por Shane Rosenthal para a Reformed Ink. O título acima não se encontra na versão original, sendo uma adaptação para esta edição online.
Teodoro de Beza foi um dos mais proeminentes reformadores, sendo discípulo de João Calvino e sucessor desse em Genebra. Os escritos de Beza foram best-sellers durante o período da Reforma e na geração seguinte. O estilo direto e didático de Beza o torna um grande mestre e um divulgador da Reforma de fácil compreensão a todos. Infelizmente há pouco material disponível de Teodoro de Beza em língua portuguesa, mas a Editora Reformata vem reparar essa lacuna ao resgatar, a partir da comemoração da Reforma neste 31 de outubro, a importante contribuição de Teodoro de Beza à Teologia Reformada.
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Nós cremos no Espírito Santo. Ele é o poder essencial do Pai e do Filho (Gn 1:2). Reside neles e com eles é co-eterno e consubstancial. O Espírito procede do Pai e do Filho (Jo 14:16; 16:7-15). É um só Deus com Eles (Rm 8:9-11, At 5:3-4; I Co 12:4-8; 3:16) e sempre é uma pessoa distinta de um e de outro (Mt 28:19). Foi nesta crença que a Igreja prevaleceu, pela Palavra de Deus, contra Macedônio, que negou a divindade do Espírito Santo. Sua heresia e outros hereges similares foram condenados no Concílio de Constantinopla em 381 d.C. A infinita força e infinito poder do Santo Espírito são demonstrados na criação e na preservação de todas as criaturas, desde a fundação do mundo (Gn 1:2; Sl 104: 29,30).
No entanto, neste tratado, consideraremos especialmente os efeitos que Ele produz nos filhos de Deus. Como, juntamente com a fé, Ele os conduz a graça de Deus para fazê-los sensíveis ao seu poder eficaz (Rm 8:12-17; I Co 2:11,12; I Jo 4:13). Em síntese, como Ele os conduz mais e mais para a finalidade pela qual foram predestinados antes da fundação do mundo (Ef 1:3-4).
O Espírito Santo nos une a Jesus Cristo através da fé.
O Espírito Santo é, portanto, aquele pelo qual o Pai atrai e mantém seus eleitos sob a posse de Jesus Cristo, Seu Filho; Ele, consequentemente, concede todas as dádivas necessárias para a salvação dos eleitos. Entretanto, é necessário, em primeiro lugar, que o Espírito Santo nos torne aptos e prontos para receber a Cristo. É isto o que ele faz ao criar em nós, por pura bondade e misericórdia divina, aquilo que chamamos de “fé” (Ef 1:17; Fp 1:29), o único instrumento pelo qual nós nos apegamos a Jesus Cristo quando Ele nos é oferecido e o único meio pelo qual podemos recebê-lo (Jo 3:1-13, 33-36).
Os meios utilizados pelo Espírito Santo para criar e preservar a fé em nós
Para criar em nós este instrumento de fé, e também para alimentá-lo e fortalecê-lo mais e mais, o Espírito Santo usa dois meios ordinários (sem, contudo, lhes comunicar o seu poder, mas trabalhando por meio deles): a pregação da Palavra de Deus e seus Sacramentos (Mt 29:19-20; At 6:4; Rm 10:17; Tg 1:18; I Pe 1:23-25). Em outro momento retornaremos a isto; primeiro definiremos o que é esta fé tão preciosa e quais são os seus efeitos e instâncias.
A natureza da fé e como ela é necessária
Neste ponto, somos grandes inimigos da nossa própria salvação por conta da nossa corrupção natural (Rm 8:7, I Co 2:14), de modo que se Deus apenas se contentado em nos dizer que encontraríamos nossa salvação em Jesus Cristo, nós simplesmente escarneceríamos dEle. Assim o mundo sempre fez e o fará até o fim (I Co 1:23-25; Jo10:20; At 2:13; Lc 23:35). Além disso, se Ele apenas nos falasse que crer em Jesus Cristo é o meio pelo qual experimentamos a eficácia deste remédio contra a morte, sem acrescentar mais nada, isso em nada nos favoreceria (Jo 3:5-6). Pois, neste sentido, somos mais do que estúpidos (Sl 51:15; Is 6:5; Jr 1:6), surdos (Sl 40:6; Jo 8:47; Mt 13:13), e cegos devido a corrupção da nossa natureza (Jo 1:5; 3:3; 9:41). Só o simples fato de desejar acreditar seria impossível para nós, tanto quanto seria impossível a um homem morto voar (Jo 12:38, 39; 6:44).
É necessário, portanto, que em meio a tudo isso, o bondoso Pai que nos escolheu para sua glória, venha multiplicar sua misericórdia para com aqueles que lhe são hostis. Ao declarar que Ele nos deu o seu próprio Filho para que todo aquele que nEle crer não pereça (Jo 3:16), cria também em nós a própria disposição de fé que nos é exigida. Contudo, a fé da qual falamos não consiste somente em crer que Deus é Deus e que o conteúdo da sua Palavra é verdadeiro – nisso, na verdade, até os demônios creem e esta crença os fazem tremer (Tg 2:19). Mas nós chamamos de “fé” um determinado conhecimento que, somente por sua graça e bondade, o Espírito Santo grava profundamente no coração dos eleitos de Deus (I Co 2:6-8). Por este conhecimento, cada um deles, tendo em seu coração a segurança de sua eleição, apropria-se e aplica a si mesmo a promessa de sua salvação em Jesus Cristo.
A fé a qual me refiro, não apenas crê que Jesus Cristo morreu e ressuscitou pelos pecadores, mas também vem para nos unir a Ele (Rm 8:16,19; Hb 10:22, 23; I Jo 4:13, 5:19). Quem verdadeiramente crê e confia somente nEle, está seguro da sua salvação a ponto de não mais duvidar dela (Ef 3:12). Por este motivo S. Bernardo disse, de acordo com toda a Escritura, o seguinte: “se você acredita que seus pecados não podem ser apagados, exceto por aquele contra quem você pecou, você faz bem. Mas acrescente mais uma coisa: que você acredita que os seus pecados foram perdoados por Ele. Esse é o testemunho que o Espírito Santo dá ao nosso coração, dizendo, ‘seus pecados estão perdoados”.
O objeto e poder da verdadeira fé
Já que Jesus Cristo é o objeto da fé – Cristo como nos é apresentado na Palavra de Deus –, há dois pontos que devem ser bem apreciados. De um lado, onde não existe a Palavra de Deus, mas apenas a palavra do homem, seja quem ele for, não existe fé, mas somente um devaneio ou uma opinião que não pode deixar de nos enganar (Rm 10:2-4; Mc 16:15, 16; Rm 1:28; Gl 1:8-9). Por outro lado, a fé nos envolve e nos une a Jesus Cristo, e a tudo o que há nEle, uma vez que esta união nos foi dada contanto que creiamos nEle (Jo 17: 20-21; Rm 8:9). Seguem, então, duas coisas: ou não encontramos tudo o que é necessário para a nossa salvação em Jesus Cristo; ou, se tudo o que nos é necessário está nEle, aquele que tem a Jesus Cristo, através da fé, tem tudo. Ora, dizer que todas as coisas necessárias para a nossa salvação não podem ser achadas em Cristo é uma blasfêmia terrível, pois tal afirmação o tornaria nosso salvador apenas parcialmente (Mt 1:21). Resta-nos, portanto, a única alternativa: se estamos unidos a Cristo, pela fé, temos nEle tudo o que precisamos para a nossa salvação (Rm 5:1). Isso foi o que o Apóstolo quis dizer quando declarou que “não há condenação para os que estão em Jesus Cristo".
Como deve ser entendida a Palavra de Deus que declaramos juntamente com S. Paulo: “nós somos justificados somente pela fé”.
Podemos explicar que a nossa justificação se dá somente pela fé da seguinte maneira: a fé é uma disposição pela qual confessamos a Jesus Cristo e, consequentemente, recebemos a sua justiça, isto é, toda a sua perfeição. Quando, portanto, sustentamos a afirmação de S. Paulo (Rm 1:17; 3:21-27; 4:3; 5:1; 9:30-33; 11:6; Gl 2:16-21; 3:9,10, 18; Fp 3:9; 2 Tim 1:9; Tito 3:5; Hb 11:7), de que somos justificados somente pela fé, ou gratuitamente, ou pela fé e não pelas obras (fornecemos o mesmo significado para todas essas alternativas). Nós não queremos dizer que a fé seja uma virtude em si mesma que nos faça justos diante de Deus. Pois isso seria colocar a própria fé no lugar de Jesus Cristo que é, e somente Ele é, nossa perfeita e completa justiça.
Desta maneira, proferimos, assim como o apóstolo, que é somente pela fé que somos justificados, na medida em que ela nos incorpora àquele que nos justifica, Jesus Cristo, a quem somos unidos e perfeitamente ajustados. Somos então feitos participantes dEle e de seus benefícios. Estes benefícios, sendo-nos imputados e oferecidos, são o suficiente para nos absolver e nos declarar justos diante de Deus.
Ter segurança da nossa salvação através da fé somente em Jesus Cristo não é, de modo algum, arrogância ou presunção.
Confirmamos que estar seguro da nossa salvação, pela fé, não só não é presunção, nem arrogância, como pelo contrário, é o único meio pelo qual nos despojamos de toda soberba a fim de darmos unicamente a Deus toda a glória (Rm 8:16,38; Ef 3:12; Hb. 10:22,23; 1 Jo 4:13; 5:19; Rm 3:27; 4:20; 1 Co. 4:4; 9:26,27). Só a fé nos ensina a esvaziar-nos de nós mesmos, nos obrigando a reconhecer, de maneira sincera, que não podemos achar em nós mesmos nada além de motivos para nossa completa condenação. Ela nos conduz a Jesus Cristo, nos ensina e nos assegura que somente nEle e através de sua justiça, encontraremos salvação diante de Deus. Certamente, tudo o que está em Cristo, isto é, toda a sua justiça e perfeição (nEle não havia pecado, tendo cumprido com retidão toda a Lei), são imputadas a nós e concedidas como se fosse nossas, desde que o confessemos pela fé.
Por esta razão S. Bernardo disse que “o testemunho da nossa consciência é a nossa glória: não o testemunho de uma mente enganosa, que engana ao seu dono, como o vaidoso e soberbo fariseu (Lc 18:11,12); esse não é um verdadeiro testemunho. Contudo, o verdadeiro testemunho é aquele que o Espírito Santo concede ao nosso espírito”.
A fé encontra em Jesus Cristo tudo o que é necessário para a salvação
Essa alegação requer que alguns detalhes sejam expostos, para que se compreenda que, pela fé, tomamos o remédio eficiente para nos assegurar plenamente da vida eterna; como está escrito: “o justo viverá pela fé” (Hc 2:4; Rm 1:16,17; Gl 3:11). Por conseguinte, dizemos que tudo o que impede o homem de ter comunhão com Deus, que é perfeitamente justo e bom, reside em três pontos. No entanto, diante de cada um desses pontos, achamos o remédio não em nós mesmos, mas em Jesus Cristo e em tudo o que Ele fez por nós – desde que estejamos unidos a Ele em plena comunhão e gozando de todos os seus benefícios (Jo 17:9-11, 20-26).
Por isso a Igreja, isto é, a assembleia dos fiéis, é chamada de esposa de Cristo (Rm 7:2-6; 8:35; 2 Co 11:2; Ef 5:31,32); este título mostra claramente a grandeza da união e comunhão estabelecidas entre Cristo e aqueles que, pela fé, confiaram-se a Ele. Pois, devido a esta união e este casamento espiritual pela fé, Ele tomou sobre si todas as nossas misérias e, pela sua pura bondade e misericórdia, recebemos dele todos os seus tesouros.
Veremos isso adiante.
O remédio que a fé encontra somente em Jesus Cristo para combater o primeiro ataque da primeira tentação: “a multidão dos nossos pecados” - a segurança que podemos ter em relação aos santos e a nós mesmos.
Vejamos agora como, somente em Jesus Cristo, encontramos um remédio seguro contra todas as tentações de Satanás e todos os problemas de nossa consciência.
Em primeiro lugar, Satanás e nossa consciência demonstram que somos verdadeiramente indignos de sermos salvos, e muito merecedores da condenação. Colocam em primeiro plano a natureza de Deus, perfeitamente justo, aquEle que, por sua natureza, é o grande inimigo e vingador de toda a iniquidade. Nós, de fato, estamos envoltos em nossos infinitos pecados. Logo, nada podemos fazer a não ser aguardar pelo salário do pecado, ou seja, a morte eterna (Rm 6:23).
O que os homens podem alegar contra esta acusação de Satanás e de sua consciência? Certamente, nada que sirva, a não ser o que já tenho exposto. Porque, se recorrem à misericórdia de Deus, esquecendo-se da Sua justiça, enganam-se a si mesmos.
Uma coisa é certa: a misericórdia de Deus é abundante, porém, é necessário que a Sua justiça também seja totalmente reconhecida. E isto é algo que já declaramos.
Contudo, vejamos os problemas de desejarmos, a fim de encobrir nossos pecados, reivindicar os méritos dos santos:
1. Nós fizemos a Deus um grande mal; por isso Davi escreveu: “E não entres em juízo com o teu servo, porque à tua vista não se achará justo nenhum vivente” (Sl 143:2, ACF). Em outra passagem, Davi confessa que suas obras não podem ascender a Deus (Sl 16:2). E o que S. Paulo escreveu sobre Abraão, santo e pai daqueles que creem? Diz ele: “se Abraão foi justificado pelas suas obras, tem razão para glorificar-se a si mesmo, mas não diante de Deus. Pois o que diz a Escritura? “Creu Abraão a Deus, e isso lhe foi imputado como justiça” (Rm 4: 2-3, ACF). E o que diz S. Paulo acerca de si mesmo? “certamente”, ele diz, “Porque em nada me sinto culpado; mas nem por isso me considero justificado” (I Co 4:4, ACF).
Como, então, podemos pleitear os méritos dos santos para encobrir os nossos pecados, sendo que eles mesmos só recorrem à misericórdia de Deus, suprida por Jesus Cristo (Fp 3:8)?
2. Além disto, se os próprios santos tivessem merecido o paraíso pelas obras empenhadas em sua vida santa (o que não é factível, uma vez que eles mesmos testemunham o contrário), já não teriam recebido o pagamento devido por seus méritos? Como poderíamos nós, portanto, reivindicar estes méritos diante de Deus mais uma vez?
3. Dizer que os santos dispunham de tanto mérito, ao ponto de sobrar algum para nós, é qualificar como mentira o que eles nos deixaram por escrito. Aliás, isso não seria como se estivéssemos afirmando que eles em nada dependem da morte de Jesus Cristo, já que eles possuem em si mesmos mais do que o suficiente para necessitarem dEle?
4. E, então, se eles tiverem méritos excessivos, de que maneira podemos saber que tais méritos são nossos? É por aceitá-los como tal, ou por comprá-los? Em relação a compra, S. Pedro repreendeu Simão, o mágico, por tal comércio falso e amaldiçoado: “O teu dinheiro seja contigo para perdição, pois cuidaste que o dom de Deus se alcança por dinheiro” (At 8:20, ACF).
É desta maneira que, ao acreditar estarmos honrando aos santos, na verdade os desonramos o máximo o possível. Agora, se as obras dos santos nada podem nos oferecer neste âmbito, o que encontraremos em nós mesmos, ou em qualquer outro homem, que seja suficiente para nos fortalecer contra esta acusação de Satanás?
A fim de encurtar todas essas falsas acusações, consideremos os seguintes pontos:
Em primeiro lugar, não pensaríamos que um homem é desprovido de bom senso ao se convence de que está livre de um credor pelo simples devaneio de imaginar ter quitado o que na verdade outra pessoa pagou em seu lugar? É assim que agimos em relação a Deus quando não nos damos por satisfeitos somente pelos méritos de Jesus Cristo. Pois, que fundamento tem todo o resto, exceto a fantasia dos homens, como se Deus tivesse de achar bom tudo o que nos parece bom? Ao contrário, devemos nos submeter ao que Cristo disse: " Mas, em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens" (Mt 15:9 - ACF). E, em outra passagem, diz: “Quando vindes para comparecer perante mim, quem requereu isto de vossas mãos, que viésseis a pisar os meus átrios?" (Is 1:12 - ACF).
Segundo, quando dizemos que descansamos somente sobre a misericórdia de Deus, mas imaginamos que nós mesmos a pagamos, no todo ou em parte, isso não seria zombar de Sua misericórdia (Rm 4:4)?
Terceiro, não se contentar unicamente com o mérito de Jesus Cristo, mas querer acrescentar outros a ele, não é como se estivéssemos dizendo que Jesus não é o Cristo e, portanto, dizendo que é nosso Salvador apenas em parte (Gl 2:21)?
Quarto, não seria isto despojar Deus da Sua perfeita justiça (Rm. 3:26) e, consequentemente, da sua divindade (na medida em que isso nos fosse possível), ousando as obras dos homens opor-se à Sua ira, obras contra as quais pouco se poderia dizer, por melhores que fossem (Lc. 17:10)? Disse Davi: " E não entres em juízo com o teu servo" (Sl. 143:2, ACF).
Aprendamos, portanto, a responder de uma maneira diferente ao argumento de Satanás mencionado acima. Satanás, você diz que Deus é perfeitamente justo e o Vingador de toda iniquidade? Confesso-o, mas acrescento outra propriedade da Sua justiça que vós deixastes de lado: como Ele é justo, Ele se contenta em ter pago uma vez por todas. Dizes a seguir que tenho infinitas iniquidades que merecem a morte eterna? Confesso, mas acrescento o que maliciosamente omitiste: as iniquidades que estão em mim foram amplamente castigadas e punidas em Jesus Cristo, que suportou o julgamento de Deus em meu lugar (Rm 3:25; I Pe 2:24).
É por isso que chego a uma conclusão bem diferente da sua. Como Deus é justo (Rm 3:26) e não exige pagamento duas vezes, pois Jesus Cristo, Deus e homem (II Cor 5:19), tem satisfeito por sua infinita obediência (Rm 5:19; Fil 2:8) a infinita majestade de Deus (Rm 8:33); segue-se que minhas iniquidades não podem mais me arruinar (Col. 2:14). Elas já estão apagadas e lavadas da minha história pelo sangue de Jesus Cristo que foi feito maldição por mim (Gl 3:13), e que sendo justo, morreu pelos injustos (I Pe 2:24).
A partir daí, é certo que Satanás saberá bem colocar nossas aflições diante dos nossos olhos, e especialmente a morte (Rm 5:12). Ele alegará que estas são testemunhos que mostram que Deus não perdoou nossos pecados.
Porém, quanto às aflições, devemos responder, em primeiro lugar: embora toda aflição e morte tenham entrado no mundo pelo pecado, Deus nem sempre tem em conta os nossos pecados quando somos afligidos. Estabelecemos isto a partir de toda a história de Jó e de outras passagens das Escrituras (Jo 9:3; I Pe 2:19; 3:14; Tg 1:2). Deus tem, contudo, vários outros fins em vista, que tendem à Sua glória e ao nosso benefício, como explicaremos mais adiante. Por outro lado, quando Deus aflige os Seus pelos pecados deles, mesmo que a aflição venha para fazê-los sentir as dores da morte (Jó 13:15), Ele não intenta a sua ira contra eles como Juiz para condená-los, mas como um Pai que está castigando Seus filhos para impedi-los de perecer (II Cor. 6:9; Hb. 12:6; II Sm 7:14), ou para conceder um exemplo aos outros (II Sm 12:13,14).
O remédio que a fé encontra, somente em Jesus Cristo, contra a segunda acusação da primeira tentação:
"Somos destituídos da justiça que Deus justamente exige de nós".
Aqui reside o segundo ataque que Satanás pode levantar contra nós por causa da nossa indignidade: não é suficiente não ter pecado, ou seus pecados terem sidos pagos. Mas é preciso mais. É preciso que o homem cumpra toda a Lei, ou seja, que ame perfeitamente a Deus e ao próximo como a si mesmo (Dt. 17:26; Gl 3:10-12; Mt 22:37-40). Trazendo, pois, esta justa constatação, Satanás vence ao dizer à nossa pobre consciência: não sabei bem que não podeis escapar da ira e da maldição de Deus?
Agora, contra esta acusação, em que os homens podem nos beneficiar, exceto somente Cristo? Esta questão envolve uma obediência perfeita que jamais encontraríamos em nenhum outro senão em Jesus Cristo. Aprendamos, pois, a apropriarmo-nos uma vez mais, pela fé, de outro tesouro advindo de Cristo: a Sua justiça. Sabemos que é Ele quem cumpriu toda a justiça (Mt 3,15: Fp 2,8; Is 53,11). Ele tem obedecido e amado perfeitamente a Deus, Seu Pai, e tem amado perfeitamente Seus inimigos (Rm 5: 6-10) ao ponto de ser feito maldição por eles, como diz S. Paulo (Gl 3:13). Ou seja, até o ponto de suportar, em favor deles, o julgamento da ira de Deus (Cl 1:22; II Co 5:21).
Assim, revestidos dessa perfeita justiça que nos é dada pela fé, como se fosse propriamente nossa (Ef. 1:7-8), podemos ser aceitos por Deus (Jo. 1:12; Rm. 8:17), como irmãos e coerdeiros de Jesus Cristo.
Tendo este ponto sido argumentado, Satanás deve calar-se – desde que tenhamos fé para receber Jesus Cristo e todos os benefícios que Ele possui, a fim de comunicá-los aos que creem nEle (Rm 8:33).
A terceira acusação da mesma tentação: “a corrupção natural, ou o pecado original, que reside em nós, faz com que Deus ainda nos odeie”.
Resta ainda a Satanás mais uma acusação baseando-se nesta tentação sobre a nossa iniquidade, sendo ela: embora tenhais sido satisfeito a pena pelos vossos pecados na Pessoa de Jesus Cristo, e estejais também, pela fé, cobertos com a Sua justiça, não obstante sois corruptos na vossa natureza e nela ainda habita a raiz de todo pecado (Rm 7:17,18). Como, então, ousas comparecer diante da majestade de Deus que é o Inimigo de toda depravação (Sl. 5:5), e que vê as profundezas do coração (Sl. 44:21; Jr. 17:10)?
Agora, neste cenário, encontramos de novo um remédio imediato somente em Jesus Cristo. Devemos confiar nEle. Na verdade, ainda estamos limitados a este corpo mortal (Rm 7:24) e por isso ainda não praticarmos o bem que desejamos. Ainda sentimos o pecado que habita em nós (Rm 7:21-23), e a carne permanece lutando contra o Espírito (Gl 5:17). É por isso que, em relação a nós mesmos, ainda estamos corrompidos no corpo e na alma (I Cor 4:4; Fp 3:9). Mas na medida em que temos fé, estamos unidos (I Cor. 6:17), encarnados (Ef. 4:16; Cl 2:19), enraizados em Jesus Cristo (Cl. 2:7; Rm. 6:5). Nele, desde o primeiro momento da sua concepção no ventre da virgem Maria (Mt 1:20; Lc 1:35), nossa natureza foi mais plenamente restaurada e santificada (Hb 2:10,11), do que quando foi criada pura em Adão; visto que Adão foi feito somente à imagem de Deus (Gn 1:27; 1Co 15:47), enquanto que Cristo é verdadeiro Deus, que tomou para si a nossa carne, concebida pelo poder do Espírito Santo.
Esta santificação da natureza humana em Jesus Cristo é considerada como nossa por meio da fé. Assim, o restante da corrupção natural que, mesmo depois da regeneração, ainda habita em nós, não nos condena (Rm 8:1-3). Nossa iniquidade é coberta e totalmente absorvida pela santidade de Jesus Cristo, que é muito mais poderosa para nos santificar diante de Deus do que a corrupção natural é para nos condenar.
O remédio para a segunda tentação: “temos fé ou não?”
Numa segunda tentação, Satanás responderá então que Jesus Cristo não morreu por todos os pecadores, observando que nem todos serão salvos. Recorramos então à nossa fé, e respondamos-lhe que, na verdade, somente os crentes receberão o fruto do sofrimento e da satisfação de Jesus Cristo. Isto, porém, ao invés de nos perturbar, nos dá segurança, pois sabemos que temos fé (Rm 8:15; 1 Co 2:12-16; 1 Jo 4:13). Como já dissemos anteriormente, não basta ter uma crença generalizada e confusa de que Jesus Cristo veio para tirar os pecados do mundo. Mas é necessário que cada um aplique isto a si mesmo e se aproprie de Cristo pela fé, para que cada um conclua em si mesmo: estou unido a Jesus Cristo pela fé, por isso não posso perecer e seguro estou da minha salvação (Rm 8:1,38, 39; I Co 2:16; I Jo 5:19-20).
Assim, para confirmar que repelimos Satanás nas três acusações anteriores da primeira tentação, e para resistirmos a esta segunda, é necessário que saibamos se temos ou não essa fé. A melhor forma é voltar tais efeitos para a causa que os produz. Ora, os efeitos que Jesus Cristo produz em nós, quando nos apropriamos dEle pela fé, são dois. O primeiro é o testemunho que o Espírito Santo dá ao nosso espírito de que somos filhos de Deus e nos habilita a chorar e clamar com segurança: “Abba, Pai” (Rm 8:16; Gl 4:6). A segunda forma é entender que quando nos apropriamos de Cristo pela fé, não se trata de mera fantasia e imaginação tola e vã, embora espiritualmente, isso acontece de fato, (Rm 6:14; I Jo 1:6, 2:5, 3:7). De modo semelhante em que a alma produz seus efeitos quando está naturalmente unida ao corpo, assim é, quando pela fé, Jesus Cristo habita em nós de forma espiritual. Ele produz poder e nos revela as Suas graças.
Graças que são descritas na Escrituras pelas palavras “regeneração” e “santificação”, e nos fazem novas criaturas quanto as qualidades que podemos ter (Jo 3:3; Ef 4:21-24).
Esta regeneração, ou seja, um novo começo e uma nova criação, é dividida em três partes. Da mesma forma que a corrupção natural mantém-nos cativos, tanto nossa alma quanto o corpo, produz em nós pecados e morte (Rm 7:13), assim também o poder de Jesus Cristo, fluindo e transpassando-nos com eficácia, tomando posse de nós, produz em nós três efeitos: A morte do pecado, ou seja, desta corrupção natural que a Escritura intitula de “velho homem”; seu sepultamento; e, finalmente, a ressureição do “novo homem”. S. Paulo, em particular, descreve exaustivamente essas coisas (Rm 6; I Pe 4:1-2). A morte da corrupção, ou do pecado, é um efeito de Jesus Cristo em nós. Pouco a pouco, Ele destrói esta maldita corrupção da nossa natureza, de modo que se torna menos poderosa para produzir em nós seus efeitos: nos propósitos, nas concessões, e em quaisquer outras ações que sejam contrárias à vontade de Deus.
O sepultamento do velho homem é um efeito do mesmo Jesus Cristo (Rm 6:4; Cl 2:12; 3:3-4). Pelo Seu poder, o velho homem, que recebeu o seu golpe fatal, não deixa de ser aniquilado pouco a pouco. Em suma, da mesma forma que o sepultamento do nosso corpo é uma progressão da morte, assim o sepultamento do nosso velho homem é uma progressão e consequência de estar morto. Para isso servem muito as aflições, com as quais o Senhor nos visita diariamente (II Co. 4:16); Ele também nos dá provações espirituais e físicas, das quais devemos nos servir diligentemente, para levar cada vez mais à morte a rebelião da carne, que luta contra o Espírito (I Co. 9:27; Gl. 5:17).
Finalmente, para os crentes, a primeira morte é a conclusão da mortificação e sepultamento definitivo do pecado, pois põe fim à guerra da carne contra o Espírito (Fp 3:20,21).
A ressurreição do novo homem, este homem cujas qualidades e faculdades são verdadeiramente renovadas, é o terceiro efeito do mesmo Jesus Cristo vivendo em nós. Tendo mortificado em nossa natureza o que tinha de corrupção, Ele, então, nos dá um novo poder e nos recria. Assim, nossa compreensão e nosso julgamento, iluminados pela pura graça do Espírito Santo (Ef. 1:18), e governados pelo novo poder que recebemos de Jesus Cristo (Rm 8:14), começam a compreender e a aprovar aquilo que, anteriormente, era loucura (I Co 2:14) e abominação (Rm 8:7) para eles. Desta forma, a vontade é reorientada para odiar o pecado e render-se a justiça (Rm 6:6). Finalmente, todas as faculdades do homem começam a afastar-se do que Deus proibiu, e a seguir tudo o que ele ordenou (Rm 7:22; Fp 2:13).
Estes são, portanto, os dois efeitos que Jesus Cristo produz em nós. Se os experimentamos, a conclusão é infalível: temos fé e, consequentemente, como já dissemos, temos Jesus Cristo vivendo em nós eternamente.
É evidente, portanto, que cada crente deve vigiar, sobretudo, para manter por súplica contínua, este testemunho que o Espírito de Deus dá aos seus. Deve-se também desenvolver a dádiva da regeneração que recebeu num exercício contínuo das boas obras (Rm 12, 9-16), para as quais sua vocação apela. Neste sentido diz-se que aquele que é nascido de Deus não vive em pecado (I Jo 5:18), ou seja, não se vicia no pecado, mas resiste cada vez mais, para que tenha, consequentemente, mais segurança de sua eleição e vocação (II Pe 1:10).
Para chegar ao conhecimento desta regeneração, é necessário conhecer os seus frutos. Assim, como já disse, o homem libertando-se do pecado, ou seja, de sua corrupção natural, começa, graças ao poder de Jesus Cristo que habita nele, a produzir os bons frutos que chamamos de "boas obras". Por isso dizemos, e com total razão, que a fé da qual falamos não pode existir sem boas obras, assim como o sol não pode existir sem luz e o fogo sem calor (I Jo 2:9,10; Tg 2:14-17).
Tradução: Isabelle Martins
Revisão e Edição final: Rev. Regis Domingues
Fonte;https://www.editorareformata.com/recursos/fe-e-justificacao-theodore-beza
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